Déficit habitacional - uma ilusão de ótica econômica, por Sergio Saraiva

Publicado no blog Oficina de Concertos Gerais e Poesias, do autor.


O Brasil vive como que em uma trágica ilusão de ótica – enxerga-se que, devido a um déficit habitacional, pessoas tenham que morar e morrer em habitações precárias e, no entanto, existem mais imóveis vagos do que famílias para habitá-los. 

A tragédia o edifício Wilton Paes de Almeida, em São Paulo, ocupado por sem-tetos e que desabou após incêndio trouxe a vista novamente a questão do déficit habitacional que o Brasil enfrenta.

O que se viu, na imprensa, no entanto, foi tudo, menos uma discussão séria sobre esse problema. Tratou-se de culpabilizar das vítimas e, como não poderia deixar de ser, culpabilizar o PT e o Programa Minha Casa - Minha Vida. Ainda que eles não estejam mais no poder.

No entanto, é a crise econômica trazida com o Golpe de 2016 a grande responsável por aquelas pessoas estarem onde estavam.

E não era necessário que lá estivessem. Estudos da Fundação João Pinheiro - entidade do governo de Minas Gerais de apoio técnico à Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão - mostram que o déficit habitacional só se mantém porque as pessoas foram alijadas da renda necessária para comprar ou alugar imóveis que já existem e estão vagos.

Na verdade, existem mais imóveis vagos do que famílias para habitá-los.

Entendendo o déficit habitacional

Diferente do que em princípio se possa imaginar, o déficit habitacional não se refere a pessoas vivendo nas ruas, mas sim a pessoas vivendo em condições precárias de habitação.

O conceito de déficit habitacional está ligado diretamente às deficiências do estoque de moradias. Engloba tanto aquelas moradias sem condições de serem habitadas quanto a necessidade construção de novas unidades habitacionais.

O déficit habitacional pode ser entendido, portanto, como “déficit por reposição do estoque” e como “déficit por incremento de estoque”.

O déficit por reposição do estoque refere-se a:

domicílios rústicos – aquele que apresentam paredes de alvenaria ou madeira aparelhada, o que resulta em desconforto para seus moradores e risco de contaminação por doenças
depreciação dos domicílios existentes - relacionada ao pressuposto de que há um limite para a vida útil de um imóvel – 50 anos - caso ele não tenha sido alvo de manutenção e reformas, mantendo assim suas condições de uso.

O déficit por incremento de estoque refere-se a:
  • domicílios improvisados - os locais destinados a fins não-residenciais que sirvam de moradia, o que indica claramente a carência de novas unidades domiciliares;
  • coabitação familiar - soma das famílias que vivem junto a outra família em um mesmo domicílio e das que vivem em cômodos cedidos ou alugados e
  • ônus excessivo com aluguel - que corresponde ao número de famílias urbanas, com renda familiar de até três salários mínimos que moram em casa ou apartamento mas que despendem mais de 30% de sua renda com aluguel.

 O tamanho do problema

A urbanização da população brasileira sem dúvida é um fator a ser considerado – 88% do déficit habitacional é urbano. Combinado com o aumento da expectativa de vida dessa população.


Em termos proporcionais, de modo geral, a pior situação se encontra na região norte com índices de mais de 15% de déficit habitacional. Seguido de parte da região nordeste com áreas entre 10 e 12%. O Distrito Federal, paradoxalmente, também apresenta alto índice de déficit habitacional com índice de a 15%. As cidades satélites de Brasília e o alto custo de vida dessa região certamente explicam o fenômeno.


Em termos absolutos, a região sudeste – mais populosa – apresenta a pior situação com índices de déficit habitacional maiores do que 500 mil domicílios. Seguida das regiões Norte, Sul e Nordeste com déficit entre 200mil a 500 mil domicílios.

A combinação desses dois indicadores mostra uma situação muito ruim nas regiões Norte e Nordeste que apresentam ao mesmo tempo altos índices proporcionais e absolutos.

A região Centro-Oeste ao contrário apresenta os melhores índices tanto proporcionais – até 10% - e absolutos com déficit habitacional de até 100 mil. O forte crescimento da economia baseada na agropecuária explica esses resultados. Crescimento econômico e forte presença de população rural.

Estudando o problema

Quando se analisa os dados percebe-se uma melhora quase que contínua dos indicadores nos últimos 15 anos.


Em termos absolutos havia um déficit habitacional de 7 milhões e 223 mil unidades habitacionais em 2000 e em 2014 esse déficit, em termos absolutos, havia se reduzido a 5 milhões 315 mil unidades. Uma redução do déficit habitacional de quase dois milhões de unidades. Em termos proporcionais, o déficit habitacional reduzi-se de 16,1% do total de domicílio em 2000 para 9,0% dos domicílios em 2014.

Mas há detalhes a serem analisados.

O primeiro é quanto aos valores de 2000 e 2010. Eles seriam sempre maiores do que os dos outros anos porque se baseiam em dados do Censo. Nos outros anos os dados foram retirados das PNAD – pesquisa nacional por amostra de domicílio – que tem uma cobertura menor.

Mesmo assim, nota-se uma melhora significativa na redução dos índices do déficit habitacional entre esses dois momentos – 4 pontos percentuais ou 282 mil domicílios retirados desse déficit. Em 2000 o déficit era de 7 milhões e 223 mil domicílios – 16,1% do total de domicílios – em 2010 o déficit habitacional era de 6 milhões 941 mil domicílios – 12.1%.

Isso com a população brasileira crescendo 12,3% nesse período. Passando de 175,3 milhões de habitantes para 196,8 milhões em 2010.

A população cresce e o déficit habitacional se reduz. É possível se perceber claramente a grande melhora do período. Foram os anos Lula.

Com Dilma haverá uma melhora inicial em relação aos governos Lula e depois uma estabilização da média de 5 milhões e 500 mil domicílios de déficit habitacional - 9% dos domicílios existentes – durante todo os anos em se manteve no poder.

E finalmente, com Temer, o início da reversão da trajetória de melhoria e a volta do crescimento do índice do déficit habitacional; de 9% - 5 milhões e 315 mil domicílios - em 2014 para 9,3% do total de domicílios – 6 milhões 356 mil domicílios, em 2015. Um acréscimo de mais de 1 milhão de domicílios a esse déficit, em apenas um ano.

Mais um dado que demostra a tragédia do golpe.

Minha Casa - Minha Vida – o colchão de amortecimento social

Esse é outro dado a ser analisado. O programa Minha Casa - Minha Vida lançado por Dilma Rousseff em 2009 aparentemente não trouxe maiores resultados para diminuição do déficit habitacional. O índice manteve-se estagnado em 9,0% dos domicílios durante todo o governo Dilma.

Mas essa é uma análise equivocada. Considerando-se os efeitos crise mundial na economia a partir de 2008, a estabilização do déficit, nesse momento de crise, é um grande resultado.

Ainda mais considerando que a população brasileira alcançou 204,2 milhões de habitantes em 2014 com um crescimento de 3,8% desde 2010 – quando Dilma assumiu o governo.

O Programa Minha Casa Minha Vida, segundo dados do governo de março de 2016, entregou 2,6 milhões unidades habitacionais, desde 2010. E mesmo assim o déficit habitacional não regrediu.

Não há aqui nenhum contrassenso. A explicação é simples. A crise precarizou o mesmo número de famílias quanto o Programa Minha Casa - Minha Vida pode acrescentar de unidades habitacionais.

O Programa Minha Casa Minha Vida, portanto, atuou como um colchão amortecimento da deterioração social vinda com a crise mundial de 2008.

O colchão esvaziado

Quando o governo Temer esvazia esse colchão, a degradação social é imediata.

Isso porque dados de 2014 mostram que o déficit habitacional está preponderantemente na faixa de renda familiar até 3 salários mínimos – 83,9%. Se consideramos as famílias com até 5 salários mínimos de renda, cobriremos 93,6% do déficit habitacional.

Foi justamente esse agrupamento social que foi duplamente penalizado.

Primeiramente com o desemprego a partir do golpe de 2016. A taxa de desemprego passou de 4,3% em dezembro de 2014 para 13,1% em abril de 2018. E depois com a redução pelo governo Temer das verbas do Minha Casa - Minha Vida para a faixa mais pobre da população.

Há que se considerar ainda que o Minha Casa Minha Vida atende um público por faixas de renda. As mais sujeitas aos efeitos do déficit habitacional são justamente as faixas 1 e 1,5 do programa que tiveram verbas reduzidas por Temer. Mas o programa atende até a faixa 3 para famílias com renda de até 9 mil reais. Essas famílias estão claramente a salvo dos efeitos do déficit habitacional, mas mesmo assim são atendidas pelo Minha Casa - Minha Vida que, nesse caso, acaba atuando mais como um programa de incentivo ao setor de construção civil.

Déficit habitacional – uma ilusão provocada pela crise econômica

Há ainda um dado que deve ser considerado com especial atenção nas pesquisas da Fundação João Pinheiro sobre déficit habitacional. O de que ele simplesmente não existe, quando se considera o número de imóveis vagos em condições de serem habitados.

Pelos números de 2014, o déficit habitacional era de 5 milhões 315 mil unidades. Porém, os pesquisadores encontraram 7 milhões e 241 mil domicílios vagos. Desses, 6 milhões e 354 mil em condições de serem ocupados e 886 mil em construção ou reforma.

Logo, por esses dados, há um superávit habitacional e não um déficit. Algo em torno de 1 milhão e 800 mil unidades habitacionais a mais do que o necessário para suprir o déficit habitacional.

Por que então do déficit?

Porque a crise econômica que traz o desemprego também elimina, por consequência, o acesso ao crédito e, então, esses imóveis não comercializados acabam funcionando como reserva de valor para seus proprietários, seria uma explicação.

Óbvio também que a solução de simplesmente transferir sem-teto para esses imóveis não passa de uma ilusão. Ainda que acalentada pelos que acreditam em uma revolução de feitio socialista e na reforma urbana que viria com ela.

No mundo real a solução não é tão simples. Esses imóveis, por exemplo, não estão uniformemente distribuídos pelo território nacional cobrindo as necessidades urbanas e rurais ou das periferias das grandes metrópoles. Mas esses imóveis existem. E estão desocupados. Isso é fato.

E assim, em um país extremante injusto como o Brasil, pessoas são obrigadas a viver em condições precárias de habitação, enquanto imóveis ficam vagos a espera de uma população com renda suficiente para a aquisição ou o aluguel.

É a economia, estúpido. Uma estúpida ilusão de ótica econômica.

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