A base social da esquerda política: um mundo a reconquistar, por Reginaldo Moraes

Publicado no Brasil Debate.


Entende-se por “esquerda política” o conjunto diversificado de partidos políticos que defendem plataformas visando a reformar ou revolver o sistema capitalista: trabalhistas, socialistas, socialdemocratas, comunistas. A base social dessa esquerda foi, desde o século 19, o proletariado. Mais especificamente, o proletariado industrial. Mais focalizado ainda: o proletariado das grandes plantas produtivas (privadas ou estatais).

A reestruturação do mundo produtivo tem levado a um relativo esvaziamento e/ou fragmentação dessa base social. E a um concomitante esvaziamento das organizações que concorriam para formar sua identidade cotidiana – como os sindicatos e associações. A partir desse cenário, é pertinente perguntar se essa base social “migrou” para outros alinhamentos políticos, à direita no espectro político.

Em termos rudes: a “nova” classe trabalhadora virou para a direita? Ou adotou formas de comportamento de outra natureza, como o alheamento, a apatia, por exemplo? De qualquer modo, isso teria efeitos negativos para a esquerda política, no confronto relativo das forças. A direita pode até não crescer numericamente, mas se a esquerda se desmobiliza, a direita fica relativamente mais forte.

Dois fatores importantes contribuíram para a transformação dessa base social, com impacto significativo na estrutura ocupacional, nas formas de contrato, na distribuição geográfica e nas formas de vida.

Um desses vetores é a automação – a possibilidade de substituir atos humanos por conjuntos de rotinas lógicas embutidas em equipamentos. O outro vetor é o conjunto de reformas macroeconômicas e microeconômicas que marcaram as economias modernas depois de 1980, sobretudo. As reformas macro incluem a privatização e a desregulamentação de atividades econômicas – além de reformas também muito fortes nos sistemas de bem-estar e serviços públicos, cada vez mais “mercadorizados”.

E as reformas microeconômicas? São as diversas formas de subcontratação e terceirização, o que levaria uma terciarização das empresas e dos empregos e a uma redistribuição do emprego no espaço.

Ao lado desses vetores – que a esquerda política por vezes chama de “fatores objetivos”, há também mudanças relevantes nos “fatores subjetivos”, isto é, nas iniciativas políticas dos sujeitos sociais relevantes. Um desses fenômenos é o crescimento ou ressurgir de uma “nova direita”. Ela é fortemente apoiada, nos Estados Unidos, sobretudo, em ONGs e fundações neoconservadoras, com “grupos de combate” relevantes em igrejas e aparatos de mídia. Essa nova direita tem enfatizado temas que parecem atrair a base social da esquerda: a imigração como bode expiatório para o desemprego e a degradação das comunidades; a religião; um nacionalismo difuso “anti-globalista”; uma rejeição ativa do “liberalismo intelectual”. Com adaptações, esse movimento também se observa em países como o Brasil.

Em vários países, essa combinação tem produzido não apenas ganhos eleitorais (votos) para os partidos e candidatos da nova direita. Talvez ela tenha gerado algo até mais preocupante: um crescente desinteresse pela política, por vezes com recusa muito ativa e (paradoxalmente) militante da política. Assim, em várias situações, não se trata apenas (nem sobretudo) da migração de eleitores da esquerda para a direita, mas para a apatia e o alheamento.

Novo cenário, novos personagens?

Essas transformações da sociedade têm enorme impacto na vida material cotidiana, em que se solidificam as forças do hábito e da associação, a formação dos sentimentos, ideias e comportamentos políticos.

No espaço da vida material das massas, há um fenômeno forte e muito visível para qualquer observador atento. O esvaziamento relativo das grandes unidades fabris foi acompanhado pelo florescimento de uma enorme “classe trabalhadora de serviços” empregada em pequenas unidades que operam segundo uma lógica de redes – com a propriedade e a gestão centralizadas, padronizadas. Mas, ao mesmo tempo, organizam-se segundo uma lógica de unidades espacialmente segmentadas, fragmentadas.

O exemplo mais chocante dessa mudança de cenário (com implicações no comportamento dos personagens) é a multiplicação dos shopping centers, aglomerados de lojas, algumas delas unidades de redes (de farmácias, cafeterias, magazines de vestuário etc.). Em São Paulo havia quase 5 mil fábricas metalúrgicas, em 1980 – grandes, médias, pequenas, minúsculas. Desde produtoras de máquinas até oficinas de bijuterias. Hoje, esse montante certamente é uma fração daquele número. Mas há perto de 500 shoppings, com essas redes comerciais distribuídas pela cidade.

O lugar de encontro dessa classe trabalhadora não é mais o local de trabalho. Talvez seja – é provável que seja – o local de moradia ou alguns lugares de consumo, como as escolas, os bares e “points” da juventude trabalhadora-estudante. A esquerda estava habituada a falar e reunir a classe trabalhadora a partir das fábricas e das grandes categorias – os poderosos sindicatos de metalúrgicos, de têxteis, de químicos, etc.

Nos anos 1970, a esquerda conseguiu avanços significativos (em parceria com o chamado clero progressista) criando conexões entre movimentos no local de moradia. Havia uma interligação e cooperação viva entre movimentos por transporte, saúde, infraestrutura urbana, e movimentos sindicais, redundando em fortalecimento de campanhas de sindicatos e oposições sindicais. Escolas de solidariedade e de política. Essa atividade foi profundamente abalada por vários fatores, um dos quais, nada desprezível, foi o brutal desmonte da igreja da libertação, uma iniciativa clara e enérgica do papa eleito em 1979.

Aqui um parêntese – que talvez seja muito calcado no que ocorreu nos movimentos populares e sindicais da Grande São Paulo. No final dos anos 1970 foram inventadas algumas formas alternativas de organização popular – locais de socialização, formação de identidades e mobilização. As Associações de Trabalhadores – efêmeras, pontuais. Algumas delas duraram mais tempo – a mais dinâmica foi a Associação dos Trabalhadores da Mooca, retratado em livro de Giuseppina de Grazia (“Da organização pela base à institucionalização”, editado pelo Núcleo Piratininga de Comunicação, Rio de Janeiro).

Um outro sinal daqueles tempos foi a tentativa de CUTs estaduais e regionais para criar espaços descentralizados com esse objetivo. A CUT regional da Grande São Paulo, por exemplo, abriu várias subsedes em bairros. Eram espaços inter categorias e multifunções – locais de encontro, de atividades culturais, de organização de campanhas. O ano de 1985 viu surgir, com sucesso, uma campanha unificada de várias categorias profissionais, na Grande São Paulo. Por razões que precisam ser estudadas, esse movimento de capilarização regrediu, já na década seguinte.

Para aonde fomos? Para onde queremos ir?

Assim, refluía essa atividade da esquerda, conectando local de trabalho e de moradia – realizada em paróquias, associações ou subsedes sindicais. Em seu lugar, cresceu um outro organizador de rotinas, aspirações e desejos – as igrejas evangélicas, que se multiplicaram, precisamente, depois de 1980. Uma escola de política se esvaziava, uma outra se erguia.

Esta observação não tem nada a ver com preferência de religião ou crença. Apenas com uma descrição dos eventos. A realidade cotidiana pressiona as crenças e as reorienta. Não devemos descartar a possibilidade de que vertentes progressistas se desenvolvam precisamente nessas novas igrejas e denominações. Já existem vários sinais desse tipo. O quanto vão vingar é outra estória. Talvez vire história

É para essa realidade que precisamos nos voltar, se quisermos que a esquerda política reencontre sua base social – agora, talvez, uma nova base social. E a dispute com as correntes neoconservadoras que avançaram nesse meio, nas últimas décadas.
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Reginaldo Moraes é professor da Unicamp, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) e colaborador da Fundação Perseu Abramo.

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