"Quando exagerinhos e erros estéticos na condução do processo maculam a justiça e servem apenas à grande obra corporativa de destruir o país", por Wadih Damous

Artigo publicado originalmente no Conversa Afiada, do jornalista Paulo Henrique Amorim.


É dever do advogado defender seus constituintes com todo seu conhecimento, sua melhor técnica e esmero argumentativo. O interesse do cliente está acima de tudo. A tergiversação é o pecado capital do advogado. Por isso mesmo a aceitação de um mandato não dispensa do exame de consciência, pois o maior ativo do defensor é a credibilidade advinda de sua coerência ética e, também, política. Causas patrocinadas por mero mercantilismo costumam afetar a reputação de quem as defende. O desdém pelo enquadramento axiológico do pleito lhe impede ver que o direito pelo qual pugna pode ser indefensável em perspectiva ética.

Não afirmo que não haja espaço para qualquer tipo de advocacia. O mercado não funciona na base da ética. Nele prevalece a máxima “pecunia non olet” (“Dinheiro não tem cheiro). O causídico sempre poderá dormir em paz com a desculpa de que qualquer acusado merece uma boa defesa.

Essa desculpa não é de todo falsa. O direito à ampla defesa deve ser garantido a santos e sacripantas indistintamente. Mas, no escrutínio diante do seu conselheiro interior, o advogado tem capacidade de optar por defender ou não o sacripanta, a depender do vulto da sacripantagem. Um advogado não é um vendedor de palavras ao léu. Precisa conquistar corações e mentes. Essa é sua arte. É mais fácil convencer quando se tem convicção do que quando só se pensa nos honorários. A ética da advocacia está intimamente vinculada não apenas à fidelidade do advogado a seu cliente, mas, sobretudo, à lealdade com que se conduz no processo, com a sinceridade de quem está defendendo aquilo em que acredita.

Quando advogados não têm convicção, podem sentir-se atraídos à causa pelas 30 moedas de prata (Mt 26, 14-16) somente, mas pagam um alto preço por isso. Em tempos de delação premiada, ser Judas está na moda e os maus conselheiros abundam. Mas quem conchava com um Caifás, mesmo que seja em Curitiba e não em Jerusalém, precisa saber que a história o julgará com a crueldade proporcional à leviandade de seus atos.

A chamada “Operação Lava-Jato” não é uma atividade judicial-policial qualquer. Também não é uma cruzada do Bem contra o Mal. É sobretudo uma iniciativa política, palco dos encontros e desencontros de múltiplos interesses. Suas consequências têm custado muito caro ao país. Não pelo ônus natural de uma persecução penal a atingir atores centrais de nossa vida política, o que por si só seria impactante, mas, muito mais, pela revelação da imaturidade das nossas instituições, que fazem gato e sapato dos direitos e garantias fundamentais do processo e se omitem na proteção da imagem dos arguidos sob forte pressão midiática. Assaz capengas entre nós, as regras processuais perderam vigência nessa obra piramidal de burocratas concurseiros, ávidos por seus minutos de glória e iludidos com sua (des)importância num quadro constitucional astênico, que mal disfarça a ruína do consenso democrático em meio ao golpe resultante na deposição da Presidenta da República Dilma Vana Rousseff. O preço pago pela sociedade não é apenas a corrupção de suas instituições, mas igualmente a extinção de milhares de empregos, o colapso de setores vitais da economia, a perda da competitividade no mercado internacional, a deterioração da imagem do Brasil e de seus atores empresariais, o desaparecimento de forte ativo tecnológico e o comprometimento do futuro das gerações jovens, fadadas a viver num país de infraestrutura precarizada e incapaz de se reerguer. O produto dessa irresponsabilidade corporativa tem um nome: Estado falido.

Não vale dizer que esse desastre nacional é culpa da corrupção e não de seu “combate”, argumento tosco dos agentes persecutórios, que, com falsa humildade, dizem estar “só fazendo seu trabalho”. Eichmann em Jerusalém também disse que apenas havia feito seu trabalho ao deportar milhões de judeus de seus lares para as câmaras de gás. Quiçá pensasse que a culpa não era dele, mas dos milhões de judeus que viviam na Europa Central.

De um agente público, principalmente dos que tomam decisões graves para o país, espera-se mais do que submissão acrítica a rotinas de serviço. Espera-se comedimento e parcimônia, estrita vinculação às leis, que fidelizam valores constitucionais, e sobretudo visão estratégica, bem como a consciência de que formas e meios não podem se sobrepor aos fins maiores do bem-estar e da soberania nacional.

O desastre nacional é culpa, sim, de moças e rapazes imaturos, recrutados entre a meritocracia ideologicamente rasa e em procedimento que não afere a capacidade de enfrentar desafios reais e riscos políticos. São dirigidos por um chefe pouco afeito à crítica de suas ações e com uma visão distorcida do papel de sua instituição.

A corrupção no Brasil já há muito carecia ser enfrentada. Isso não é novidade para ninguém. O problema da transição democrática entre nós é que ela foi feita com o esforço de resguardar privilégios e posições consolidadas de poder. Não mexemos no DNA da governação. Os caciques de antes da ditadura militar e os que com ela nasceram ou se fortaleceram não precisaram temer nada na passagem para o governo civil. Da parte dos que foram massacrados pelo autoritarismo do golpe de 1964, houve condescendência, extorquida em nome da sustentabilidade da transição. Completada esta, ocorreu a acomodação, o convívio dos contrários em nome de um consenso democrático. Banalizaram-se as más práticas, aceitas como mal menor. Pior seria um novo confronto com nossas podres elites, que pudesse ter como desfecho nova onda de perseguição contra as forças democráticas.

No âmbito do Judiciário, tal acomodação foi sustentada tanto pela ineficiência do aparato persecutório, quando se tratava de lidar os malfeitos dos poderosos, sempre representados por advogados de “grife”, ao gosto dos magistrados que cultivavam sua cercania, quanto pela extrema antipatia da vasta maioria dos juízes por demandas democráticas vistas como “esquerdistas”, para não dizer “revanchistas”.

Enquanto isso, os negócios dos corruptos e dos corruptores iam bem. Custeavam todo o sistema político com o financiamento de disputas eleitorais em valores cada vez mais próximos da estratosfera. Quem quisesse ser um “player” na macropolítica não poderia dispensá-los. A contrapartida da ajudinha era modesta: garantir uns contratinhos aqui e outros acolá, com recursos públicos a irrigar a máquina de eleger caciques.

Nas poucas vezes que o Ministério Público quis reagir, tomou balde de água fria na cabeça. Foi atropelado com a absolvição de Collor no STF; com o confisco, pelo STJ, dos autos das provas recolhidas no escritório do genro de José Sarney; com o uso de um habeas corpus no mesmo STJ a teleguiar os passos do juiz de primeiro grau no Maranhão na operação “Boi Barrica”; com a improcedência de todas as ações que tentaram bloquear o leilão da telefonia pública a preço de banana; com o desaparecimento da “pasta cor de rosa” nas gavetas do Procurador-Geral da República e por aí vai. Infindável é a lista de episódios, nos quais o Ministério Público, militante de boas causas, foi feito de bobo da corte. Consolidou-se uma política da impunidade amplamente sustentada pelo Judiciário, sempre que os suspeitos eram políticos “de bens”. Formou-se ao fim o consenso de que não era possível ganhar eleições e governar sem aliança com a casta dos corruptos.

As alianças feitas pelo PT foram reputadas indispensáveis para que Lula e, depois, Dilma pudessem se manter firmes no poder. Afinal, mesmo tendo ganho as eleições presidenciais, as bancadas da esquerda nas duas casas do Congresso eram esquálidas, incapazes até de formar maioria simples para aprovação de matérias importantes. Partidos que na sua prática nada tinham em comum com o PT foram chamados a compor o governo, para formar a base parlamentar indispensável. Os caciques de sempre, porém, nunca se davam por satisfeitos com as mordiscadas ministeriais e orçamentárias franqueadas na divisão do botim político. Queriam mais. Não atendidos, impunham ao governo derrotas pontuais no parlamento como um aviso. Nessas horas não eram “prestigiados” pelo governo. Colocavam a culpa no PT, que na sua ótica tudo queria para si. Sentiam-se parceiros menores. E isso apesar de terem sob o comando de sua gente pastas repletas de cargos e recursos para distribuir a aliados. A chantagem era quase diária. E o governo cedia sob justificativa da garantia da governabilidade.

Não se compreendeu que a aliança com os caciques de sempre, se por um lado permitia pequenos avanços numa cultura política inclusiva, por outro mantinha a velha “negociatocracia”, que se alimentava de recursos públicos para financiar sua hegemonia política.

O “turning point” na tolerância generalizada com a corrupção foi atingido quando os achacadores decidiram romper a aliança. Estavam insatisfeitos por não comandarem o caixa como sempre comandaram. O escândalo do chamado “mensalão” começou quando Roberto Jefferson aparentemente não se contentou com os quatro milhões que lhe teriam sido destinados num sinal de boa vontade para com seu partido. Quis 20 milhões supostamente prometidos e não entregues. Ficou furioso com a destituição da diretoria dos Correios por ele indicada e declarou guerra à Casa Civil dirigida por José Dirceu.

Os achacadores converteram-se em acusadores e passaram a fazer a festa da direita brasileira. Sempre lenientes com os malfeitos dos caciques, os tribunais começaram a amolar seus facões para trucidar os políticos da esquerda histórica.

Ninguém desconhece que a manutenção da aliança com os caciques corruptos fez o PT ingressar em uma zona de elevado risco ético. Mesmo sem ter plena consciência da extensão do tamanho da pilhagem, compactuou com políticos rapaces. Dividiu sua tradicional base de sustentação partidária. Rachou o partido. Distanciou-se de parte do movimento popular. Mas a maior catástrofe foi permitir que as práticas sujas da política tradicional contaminassem a imagem do próprio PT.

Essa foi a deixa para que os caciques pudessem, na base de uma campanha de destruição de reputações, retornar ao poder sem precisar dividi-lo com a esquerda. Puderam, agora, espalhar que todos eram iguais, inclusive o pudico PT. Festejaram a morte de seu alter ego ético. Embora o PT tenha se adaptado apenas à cultura dos donos do poder para, firmando aliança com estes, sustentar-se no poder para o qual fora eleito, foi transformado em líder da corrupção. E agora, com o apoio dos velhacos da política e da grande mídia, o Judiciário, que sempre premiou com sua leniência e sua ineficiência a apropriação da coisa pública pelos donos do poder, pretende estatuir um exemplo de moralidade, transformando o PT e sua liderança forjada na luta contra a ditadura em bodes expiatórios de todos os males de 500 anos de história do Brasil. Aqui entra em cena o Ministério Público com suas operações contra a corrupção. Juntou-se a fome com a vontade de comer. E o mais guloso de todos os atores estatais é um juiz de piso de Curitiba, vaidoso até a medula e com indisfarçável antipatia pelo PT e seus atores.

Muito cedo o Ministério Público descobriu que poderia tornar-se popular e melhorar seu cacife na negociação de suas vantagens e de seu status no quadro constitucional prático com o governo e o Congresso, espalhando o terror no Estado e engambelando com um discurso falso-moralista a manada dos desavisados leitores de VejaO Globo. Ações penais e de improbidade administrativa contra gestores e políticos carreiam indiscutíveis vantagens. Temidos, os membros do Ministério Público, representados por suas associações corporativas, são recebidos pelos parlamentares e dirigentes ministeriais responsáveis pelos seus ganhos. Na visão de boa parte dessa burocracia poderosa, greve é coisa de perdedor. Discretas, suas campanhas por subsídios transcorrem em salas acarpetadas, com ar condicionado, cafezinho, água gelada e muitos tapinhas nas costas. Só assim conseguiram chegar ao patamar de 30 mil reais de ganhos brutos ordinários por mês mesmo para jovens na carreira, muito acima dos ordenados de embaixadores, generais de quatro estrelas ou professores titulares de universidades públicas.

Operações como a “Lava Jato” produzem um enorme efeito de marketing positivo para a corporação e são vendidas como pílula amarga redentora de todos os males da nação. Estragos colaterais pouco importam. A culpa por eles é transferida aos investigados e acusados, presumidos como únicos responsáveis pelo caos criado.

Operações feitas de olho no Ibope têm um enorme custo institucional. Passam por cima do que é mais caro ao direito penal pós-iluminista, a presunção de inocência dos imputados. Pessoas são expostas à sanha retributivista e à curiosidade lasciva do público mesmo sem culpa formada. Juízes deixam de ser imparciais e penteiam sua vaidade em turnês mundo afora. Todos os atores estatais envolvidos, do MP, da PF e do Judiciário, apontam os dedos duros aos que elegeram como focos do ódio coletivo destilado. Abre-se a todos a vista dos detalhes mais sórdidos dos fatos em apuração, de preferência quando atingem a esquerda pudica.

Nesse terror judicialiforme os tiros ricocheteiam para todos os lados e acertam também em aliados dos caciques tradicionais. A máquina corporativa judicial-persecutória é autofágica. Esgotados os alvos de sua ação espetacular pelo lado da esquerda, passa a atirar para a direita, porque o ciclo de risco não pode ter fim. A fera não pode ser domada nem desdentada, sob pena de perder o temor dos atores que lhes garantem privilégios. Uma vez hasteada a bandeira do “combate à corrupção”, ela não pode mais ser arriada. O “combate” se torna um fim em si.

Ocorre que nenhum país sobrevive com uma agenda autofágica de “combate” sem trégua contra seus atores políticos e econômicos estratégicos. A corrupção não pode se transformar em tema principal de governo. Ninguém é a favor dela, mas há de se convir que a desigualdade, as más práticas administrativas, o sistema político-eleitoral deformado e a forte cartelização garantiram-lhe presença significativa entre nós. São esses os fatores que exigem atenção e cuidados maiores. Enfrentar a corrupção é consequência de ações contra a pobreza, contra a exclusão social, pela transparência e participação ampla na formulação de programas de governo, pela exposição pública de dados da execução orçamentária e e pela reforma político-partidária.

Curiosamente, quem mais fez nesse âmbito foram precisamente os governos do PT, que em nenhum momento baixaram a guarda no cuidado com a coisa pública. Foi nesses governos que se criou a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Ativos, um foro plurissetorial que lida com as ações necessárias contra as más práticas na administração pública. Foi nesses governos que se passou a legislação que hoje ampara a atuação da Polícia Federal e do Ministério Público. Foi nesses governos que o Ministério Público não sofreu qualquer interferência do Poder Executivo na escolha de sua chefia, sendo indicado, sempre, o primeiro de uma lista corporativa sem forma jurídica, mas com elevado peso político. O resultado teria sido um salto de qualidade na governação, não fosse a atuação política predatória em que se lançaram as instituições do complexo judiciário-policial. Empoderaram-se por iniciativa própria agentes do Estado despreparados para tanto poder. Jogaram para a plateia, viraram heróis, passaram a festejar-se e atropelaram o debate legislativo, mimetizando iniciativa popular sobre as chamadas “dez medidas contra a corrupção”, todas gestadas no foro interno do Ministério Público Federal e objetos de intensa publicidade institucional.

O que menos interessou nesse transe de megalomania corporativa foi o devido processo legal e o julgamento justo. É como se os apontados como envolvidos em práticas de corrupção fossem completamente desprovidos de direitos, destinados a servirem de tetas de informações a serem ordenhadas na base do temor à exposição, prisão e perda patrimonial. Mesmo soltos, os que se dispuseram a delatar buscaram mais do um prêmio: empenharam-se em moderar a violência processual contra si. Vazamentos de informações, operações com estardalhaço midiático, escutas de conversas entre advogados e seus clientes, conduções coercitivas de investigados sem base legal mínima e intenso marketing das ações ao público leigo desavisado – tudo é parte de uma estratégia de aniquilar as chances de qualquer resistência defensiva.

Não se trata de meros “exageros” da “Lava Jato”, como recentemente se sugeriu em artigo na Folha de São Paulo. Muito menos pode-se dizer que “não maculam” a operação. Não só maculam-na, mas invalidam-na por completo. Quando autoridades não buscam a autoria de um fato de materialidade inconteste e, sim, a materialidade de suposta conduta para atribuí-la a um autor previamente eleito, perde-se o sentido da imparcialidade e do julgamento justo. A impressão de partidarismo do juiz é reforçada por seu encontro público com protagonistas da campanha de ódio contra o PT. Descrita com pertinente causticidade por Paulo Henrique Amorim como “bolina cívica”, a imagem do magistrado todo sorrisos em conversa com Aécio Neves chega a ser um deboche.

Crises servem para clarear a visão. As máscaras caem. Os atores deixam de ser personagens e se assumem em sua essência. Covardes são vistos como covardes, oportunistas como oportunistas, traidores como traidores, cínicos como cínicos e hipócritas como hipócritas. Crises reduzem opções de ação de tal modo, que se apresentam como lances de um jogo de xadrez. Com peças brancas e peças pretas. Jamais peças cinzas. Nesta hora, é possível saber quem tem coragem, porque, como disse Kurt Tucholsky, o mais difícil é estar na contramão de seu tempo e dizer alto e bom som “Não!”.

Reduzir os pecados mortais da “Lava Jato” a “exageros” que não a “maculam”, definitivamente não é um ato de coragem. Parece muito mais um discurso para captar a benevolência do magistrado exibicionista. Talvez até para melhorar as chances de defesa de um cliente de advocacia, sacripanta ou não. Quem assim qualifica a “Lava Jato” age como eficiente defensor, mas sem dúvida com pouca ou nenhuma preocupação diante da ética destroçada pela atuação de agentes públicos fora da lei.


Wadih Damous é Deputado Federal (PT-RJ) e ex-Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Rio de Janeiro.

Um comentário:

  1. Texto límpido, claro e corajoso! Pois o dedo na ferida. Alguém tinha que por! Parabéns!

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